Quem somos, de acordo com a Bíblia?


 

Verdade inconveniente

Texto de Paulo Henrique Alves Machado

De acordo com o texto bíblico (Gênesis 1:27), Deus criou o ser humano a sua imagem e semelhança, a ele pedindo que não comesse do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, porque, no dia em que dele comessem, provavelmente morreriam. Nessa história, sobre o primeiro homem e a primeira mulher (Adão e Eva) aparece uma terceira personagem conhecida como A Serpente, que no livro de Apocalipse (12:9) afirma-se ser o próprio anjo caído ao fizer rebelião nos céus. Tal personagem incentiva a mulher a comer do fruto do conhecimento e esta influencia o homem a fazê-lo também, apesar da determinação divina.

É salutar informar que, nessa história, Deus mente e a Serpente diz a verdade, uma vez que ela afirma que, diferentemente do que Deus disse, eles não morreriam, mas se igualariam ao criador. Após comerem o fruto, a divindade percebe e os expulsa dizendo: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente,”(Gênesis 3:22).

Até esse ponto, a história não parece nenhum tipo de segredo oculto, ou princípio norteador de nenhuma religião. Mas apenas uma explicação, baseada em um mito, da razão para o homem ter o conhecimento (algo divino) e ao mesmo tempo ser mortal (algo não divino). A conclusão é simples: comeu o fruto do conhecimento do bem e do mal, mas não teve tempo para comer o fruto da árvore da eternidade, reservada apenas aos seres divinos.

Há, no entanto, algo que chama menos a atenção que é a presença de um personagem que já representava nesse momento os anjos caídos (algo que só será citado mais tarde e de forma muito solta nos textos bíblicos). Mas quem são eles? Em Isaías (14:12-15), narra-se de forma breve sobre uma criatura do reino dos céus que de lá foi lançada às profundezas, por tentar usurpar o trono divino. A já citada referência ao Apocalipse (12:9), acrescenta que este ser foi de lá arremessado juntamente com  seus anjos. O ser arremessado, de acordo com a referência anterior, seria a “Antiga Serpente” que NÃO enganou Eva.

Conforme a humanidade se expandia, segundo o próprio texto bíblico, os “filhos de Deus” (anjos caídos) gostaram das filhas dos seres humanos e tiveram relações sexuais com elas, nascendo desse incesto os chamados Nefilins que, por sua vez, tornaram-se grandes heróis sobre a terra e Deus viu nascer grande maldade entre os homens (Gênesis 6:1-5). É curioso ainda que, diante dessa mestiçagem entre seres humanos e seres divinos, Deus estabelece um limite para “o seu espírito” permanecer na carne humana de até 120 anos. O que me parece a explicação para o tempo máximo de vida de um ser humano.

Na continuidade da história a que me referi anteriormente, temos o dilúvio (uma espécie de purificação dessa sociedade híbrida – de seres divinos e descendentes de Adão e Eva –corrompidos pela maldade). Porém, nem toda a humanidade foi destruída na catástrofe, já que Deus seleciona uma família que era tão híbrida quanto os demais. Esta família da qual, segundo a lógica bíblica, descendem todos os humanos atuais. Eis aí uma possibilidade mais plausível para o “pecado original”, ou seja, o pecado cometido pelos seres divinos ao tomarem para si as mulheres, criando uma raça híbrida.

No Salmo 133, há um resquício de uma tradição que, em um passado muito distante, incluía uma narrativa expurgada da Bíblia moderna; uma vez que faz referência ao Monte Hermon, também chamado de “O Monte do Juramento”. Ele recebe esse segundo nome, pois no livro apócrifo de Enoque (o primeiro), onde ele descreve, utilizando a mesma linguagem de visão do Apocalipse, como foi que os Filhos de Deus decidiram tomar as mulheres para si, através de uma verdadeira assembleia, onde, ao final, juraram sobre o monte Hermon. E a narrativa prossegue dizendo seus nomes e qual ciência cada um deles ensinou ao ser humano.

Chama a atenção como o texto bíblico, desde o início, demonstra aversão ao conhecimento, sempre relacionado ao mal ou àquilo que distancia de Deus. Não sendo a narrativa de Enoque, ainda que deletada da Bíblia, diferente em seus princípios, com apenas uma conclusão possível: “Fique distante do conhecimento. Ele é pecaminoso. Ele condenará sua alma”.

A despeito de o ser humano ser um produto híbrido daqueles seres decaídos nos primórdios da existência e desse evento ser de fato o pecado original, surge o contra-argumento (inserido pelo novo testamento) de que, apesar de nossa origem pecaminosa, fomos purificados pelo sangue de Jesus. Tal argumento nasce de um costume judaico de sacrificar uma animal ritualisticamente para expiar os pecados. Desta forma, o martírio de Jesus (relatado no novo testamento) teria o poder de redimir todo o pecado do mundo, conforme (1João 1:7); isso, porém, condicionado a seguir os passos do Cristo. Na realidade, a purificação pelo sangue do messias é apenas uma metáfora, pois a salvação de fato estaria em seguir a luz que dele emana, ou seja, dos seus ensinamentos. Surpreendentemente, no livro de Apocalipse (22:16) o próprio Jesus revela ser a “Estrela da Manhã”, termo relacionado, no antigo testamento, a “Lúcifer”(o anjo caído), como em Isaías (14:12-14).

É desconfortável notar que há pessoas (com as quais convivemos em nosso dia a dia) que de fato são devotas do Cristo, mas cuja afeição a ele não altera sua sede por vingança, inveja, maledicência, rancor e violência em todos os sentidos. Alguns com aspecto santarrão e misericordioso que os torna, a meu ver, exemplares perfeitos das criações divinas profanadas pelos anjos decaídos. Mas, na verdade, o ser humano é o que é, tendo, porém, o poder divino em suas mãos de mudar a si mesmo e tornando-se, novamente, a imagem e semelhança de Deus.


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